Em julho do ano passado, em meio a uma queda de braço do governo da Rússia com a Wikipedia – alvo de decisões judiciais e multas por ousar publicar artigos com a verdade sobre a guerra na Ucrânia –, foi lançada no país uma versão amigável à ditadura de Vladimir Putin: a Ruwiki.
Ela não tem relação com a enciclopédia virtual original, embora seu diretor, Vladimir Medeyko, tenha coordenado a representação russa da Wikimedia, administradora da Wikipedia e cuja comunidade foi fechada na Rússia no final do ano passado após pressões do Kremlin. A Wikipedia russa segue no ar, embora não se saiba até quando.
“A Ruwiki é uma organização russa e a Rússia tem as suas próprias leis”, disse Medeyko ao Novaya Gazeta, deixando claro que não buscará atritos com o regime de Putin.
O problema é que, para “seguir” as leis russas, muitas vezes é necessário entrar em conflito com a verdade: o Kremlin impôs desde o início da guerra da Ucrânia, em fevereiro de 2022, novas leis com punições rígidas para quem publica “desinformação” sobre as forças armadas do país e, por consequência, suas ações no país vizinho. “Desinformação”, nesse caso, são verdades que Putin não tolera.
O conteúdo da Ruwiki é copiado do 1,9 milhão de artigos da Wikipedia russa, mas eles são alterados – Medeyko alegou que a enciclopédia virtual original tem problemas de “confiabilidade e neutralidade”, que teriam se intensificado desde o início da guerra na Ucrânia.
As alterações feitas na Ruwiki a tornam escandalosamente chapa-branca. O maior exemplo é o artigo sobre a Ucrânia.
O texto corrobora as justificativas de Putin para invadir o país, ao apontar que, “apesar da neutralidade inicialmente consagrada na Constituição ucraniana, após o golpe de Estado de 2014, a Ucrânia estabeleceu um rumo para aderir ao bloco político-militar da OTAN, que se opõe à Rússia”.
O “golpe de Estado” mencionado no artigo foram os protestos que culminaram na saída do presidente ucraniano pró-Rússia Viktor Yanukovych há dez anos.
“Aumentando a cada ano a violação dos direitos dos cidadãos de língua russa da Ucrânia e das minorias nacionais, a guerra no Donbass, desencadeada pelas autoridades centrais em Kiev na primavera de 2014 e com duração de oito anos, o nacionalismo radical, que se tornou parte da ideologia do Estado e política na Ucrânia, os muitos anos de desenvolvimento militar da Ucrânia pela OTAN e a resultante ameaça à segurança da Rússia levaram à necessidade de uma operação militar especial na Ucrânia, que começou por decisão do presidente russo Vladimir Putin em 24 de fevereiro de 2022”, aponta o artigo na Ruwiki.
“Operação militar especial” é o termo que Putin usa para se referir à invasão à Ucrânia e também aparece no artigo sobre o ditador russo.
O texto destaca a opinião de uma analista do Ocidente de que Putin seria alvo de ataques de “caráter extremamente pessoal e ofensivo” por parte da oposição e elogia ofensivas anticorrupção do ditador russo (“foram abertos novos casos importantes de combate à corrupção e aumentou o número de detenções de altos funcionários, governadores e representantes empresariais envolvidos em corrupção”) e a introdução de “um sistema eletrônico de contratação pública, e muitos procedimentos anteriormente encerrados foram simplificados ou tornados mais transparentes”.
Vale lembrar que Putin utiliza leis anticorrupção e outras acusações criminais para perseguir opositores e ex-aliados e estimativas apontam que o próprio ditador russo teria um patrimônio oculto de cerca de US$ 200 bilhões.
Seu artigo na Ruwiki menciona que ele “possui [apenas] um apartamento com área de 77 m² e garagem de 18 m², e também utiliza um apartamento com área de 153,7 m². Putin ainda possui dois carros GAZ M21, um carro Niva e um trailer Skif”.
A respeito do mandado de prisão expedido contra o ditador russo pelo Tribunal Penal Internacional (TPI), a Ruwiki o classifica como “ilegal”, enfatiza que “o lado russo nega as acusações e não reconhece a jurisdição” da corte e relembra que o porta-voz da presidência, Dmitry Peskov, considerou as decisões do tribunal “insignificantes”.
Artigos sobre opositores a Putin na Ruwiki são cheios de críticas
Os artigos sobre oponentes de Putin são recheados de ataques contra eles. O texto sobre Alexei Navalny, líder opositor que morreu numa prisão no Ártico em fevereiro, realça as acusações de “extremismo” contra ele e as alegações de que ele morreu de causas naturais (a família contesta e aponta que o ativista foi assassinado).
A respeito da viúva de Navalny, Yulia Navalnaya, que prometeu manter o ativismo do marido, a Ruwiki tenta pintá-la como má esposa.
“Num discurso televisivo aos russos, ela observou que o seu último encontro com o marido ocorreu em meados de fevereiro de 2022; assim, durante os últimos dois anos de sua vida [de Navalny] na prisão, ela nunca visitou Alexei Navalny na colônia [penal]”, destaca o texto.
“Yulia também não compareceu ao funeral de Navalny em Moscou, realizado em 1º de março de 2024. Segundo o porta-voz do presidente russo, Dimitry Peskov, Yulia Navalnaya teve a oportunidade de vir à Rússia e ver o marido, mas optou por ficar no exterior”, diz a Ruwiki.
Em entrevista à revista americana Time em abril, Navalnaya confirmou que visitou o marido na prisão pela última vez em 2022, “alguns dias antes do início da guerra” na Ucrânia, mas disse que raramente visitas eram autorizadas “porque ele estava sempre na solitária”.
Ela afirmou que telefonemas também eram restritos, e que na última vez que conseguiu falar com Navalny, em julho do ano passado, o marido apenas falou “alô, alô” antes da ligação ser cortada.
No X, o designer gráfico Konstantin Konovalov escreveu que, apesar da Ruwiki copiar muito conteúdo da Wikipedia, o mecanismo Wiki, por ser “bastante transparente”, permite ver o histórico de alterações nos artigos.
Segundo ele, no novo site, milhares de mudanças foram feitas em artigos sobre liberdade de expressão, direitos humanos, prisioneiros políticos e censura na Rússia.
“É muito interessante observar como esses palhaços eliminam todas as coisas ‘desnecessárias’ em tempo real. Parece algo saído diretamente do romance ‘1984’ [de George Orwell]. A escala é incrível”, disse Konovalov.
“Eu realmente gostaria que um dos editores de canais populares do YouTube fizesse um vídeo sobre as ‘correções’ mais estúpidas. Parece-me que todas essas edições precisam ser registradas, então no [hipotético] Museu da Rússia Livre será possível fazer uma sala inteira de Novilíngua”, afirmou, citando o sistema linguístico do livro de Orwell por meio do qual ditaduras tornariam impossível expressar opiniões contrárias ao regime. Parece ser exatamente o objetivo da Ruwiki.