O secretário-geral da ONU, António Guterres, alertou nesta quarta-feira (18/05) para um “novo recorde” nos níveis globais de fome e para o altíssimo número de pessoas em insegurança alimentar severa, que duplicou de 135 milhões, no período pré-pandemia, para 276 milhões atualmente.
A já difícil situação se agravou ainda mais após o início da guerra na Ucrânia, que impossibilitou o escoamento adequado da grande produção de grãos no país do Leste Europeu e interrompeu cadeias de distribuição.
Guterres disse que está em “intenso contato” com Rússia, Ucrânia, Turquia, Estados Unidos e União Europeia, em um esforço para restaurar as exportações de grãos ucranianos à medida que a crise alimentar global se agrava.
“Estou esperançoso, mas ainda há um caminho a percorrer”, afirmou Guterres, que visitou Moscou e Kiev no final do mês passado. “As complexas implicações de segurança, econômicas e financeiras exigem boa vontade de todos os lados”.
Na quarta-feira, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) já havia alertado para o número cada vez maior de crianças sob risco de morrer de desnutrição severa.
Em reunião sobre segurança alimentar organizada pelos EUA, em Nova York, Guterres apelou à Rússia para permitir “a exportação segura de grãos armazenados nos portos ucranianos” e para que alimentos e fertilizantes russos, bem como os de Belarus, “tenham acesso total e irrestrito aos mercados mundiais”.
A invasão da Ucrânia pela Rússia fez com que os preços globais de grãos, óleos de cozinha, combustível e fertilizantes disparassem. Segundo Guterres, isso piorará a crise alimentar, energética e econômica nos países pobres.
“Ameaça levar dezenas de milhões de pessoas à insegurança alimentar, seguida de desnutrição e fome em massa e escassez de alimentos, em uma crise que pode durar anos”, disse.
De acordo com Guterres, essa espiral de problemas terá um impacto devastador sobre as sociedades, como em crianças que podem sofrer os efeitos da malnutrição ao longo da vida, em “meninas que serão retiradas das escolas e forçadas a trabalhar ou a casar” e em “famílias que terão de embarcar em perigosas viagens continentais, apenas para sobreviver”.
Apelo a Putin
A Ucrânia costumava exportar a maioria de seus produtos por meio de portos marítimos, mas, desde a invasão, foi forçada a escoar sua safra por trem ou por meio de pequenos portos no rio Danúbio.
“Se você tem algum coração, por favor, abra esses portos”, apelou o diretor do Programa Mundial de Alimentos da ONU, David Beasley, ao presidente russo, Vladimir Putin.
O Programa liderado por Beasley envia mantimentos a 125 milhões de pessoas e compra 50% de seus grãos da Ucrânia.
“Não se trata apenas da Ucrânia. Trata-se dos mais pobres dos pobres que estão à beira da fome enquanto falamos”, disse Beasley.
Juntas, Rússia e Ucrânia respondem por quase um terço da oferta global de trigo. A Ucrânia também é um grande exportador de milho, cevada, óleo de girassol e óleo de canola, enquanto a Rússia e Belarus – que apoia Moscou em sua guerra na Ucrânia – respondem por mais de 40% das exportações globais de potássio, um nutriente necessário na atividade agrícola.
Anfitrião do evento, o secretário de Estado americano, Antony Blinken, disse que a Rússia deve ser obrigada a criar corredores para que alimentos e outros suprimentos vitais possam deixar a Ucrânia com segurança por terra ou mar.
“Há uma estimativa de 22 milhões de toneladas de grãos em silos na Ucrânia neste momento. Alimentos que podem ser imediatamente destinados a ajudar os necessitados se puderem simplesmente sair do país”, destacou Blinken.
A ONU disse que 36 países contam com a Rússia e a Ucrânia para mais da metade de suas importações de trigo, incluindo alguns dos mais pobres e vulneráveis do mundo, como Líbano, Síria, Iêmen, Somália e República Democrática do Congo.
Portos fora de operação por ao menos seis meses
De acordo com o diagnóstico de uma fonte do governo da França, os portos ucranianos não poderão reabrir para as exportações de cereais em no mínimo seis meses.
Outro agravante é que as alternativas ferroviárias são limitadas. Em primeiro lugar, porque a Ucrânia partilha grande parte da via da antiga União Soviética, que é diferente da europeia, fazendo com que os envios de carga para o ocidente tenham de ser transferidos para outros comboios nas fronteiras (por exemplo, na Polônia).
Isso já é feito através da Romênia, mas de forma limitada, já que o porto de partida romeno só tem capacidade para movimentar entre 1 milhão e 1,5 milhão de toneladas por ano.
Uma alternativa mais simples tecnicamente seria enviar os comboios ferroviários através de Belarus para a Lituânia, mas esta opção levanta dúvidas, dado que o governo belarrusso está totalmente alinhado com o de Moscou e também está sujeito a sanções internacionais.
Além disso, supõe-se que a produção agrícola ucraniana sofrerá, e não apenas este ano, devido à destruição das ferrovias, pela perda de mão de obra mobilizada para a guerra e a dificuldade de fornecimento de sementes e fertilizantes para campanhas futuras.
Negociação com a Rússia
O embaixador da Rússia na ONU, Vassily Nebenzia, informou que Guterres conversou com o primeiro vice-primeiro-ministro da Rússia, Andrei Belousov, na terça-feira, sobre as exportações russas de fertilizantes e grãos.
“As discussões, até onde eu sei, foram boas e positivas”, disse Nebenzia a repórteres nesta quarta-feira. “Estamos preparados para fazer nossa parte. O acesso ao mercado de grãos ucraniano é outra coisa”, acrescentou.
Nebenzia disse que, embora não haja sanções diretas aos fertilizantes ou grãos russos, houve um enorme efeito no transporte, seguros e bancos depois que os Estados Unidos e outros começaram a punir a Rússia pelo que Moscou chama de “operação militar especial” na Ucrânia.
Blinken disse que é errado culpar as sanções porque os Estados Unidos criaram exceções e estão trabalhando para garantir que as medidas impostas por Washington “não impeçam que alimentos e fertilizantes saiam da Rússia ou de qualquer outro lugar”.
O tema continuará a ser abordado na quinta-feira, numa reunião do Conselho de Segurança da ONU.
Fonte: DW Brasil.