Um tema que, constantemente, vem à tona, no Brasil, é do chamado “foro privilegiado” que, na verdade, é conceitualmente o “foro por prerrogativa de função”. Há, contudo, no âmbito legislativo ações, como, por exemplo, a PEC 333/17 – Proposta de Emenda à Constituição – que visa extinguir o “foro por prerrogativa de função”. Não há, aqui, intenção de adentrar na seara jurídica e constitucional da questão e sim tratar de alguns apontamentos de caráter sociológico.
São, praticamente, 60 mil ocupantes de cargos em 40 tipos de funções nas esferas municipal, estadual e federal e dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário que gozam desta prerrogativa. Tais informações podem ser obtidas no site da Câmara dos Deputados, bastando procurar pelo tema em tela. No site, portanto, temos a seguinte questão: “É correto dizer “foro privilegiado” e a resposta, logo abaixo: “Não se trata de um privilégio, uma vez que não é um direito da pessoa, mas do cargo ou mandato do qual ela é titular. O foro por prerrogativa de função consta da Constituição Federal como uma exceção expressa ao princípio da isonomia, por isso se entende que não viola o princípio da igualdade previsto no artigo 5º da Constituição”. Um dos problemas, todavia, é quando vale tal critério e, ainda no site da Câmara dos Deputados, temos o seguinte: [Vale] para crimes comuns (que não decorrem do exercício do mandato), podendo incluir também crimes de responsabilidade, dependendo da autoridade. Embora não esteja expresso na Constituição, a jurisprudência do STF estabelece que o foro vale apenas enquanto durar a função no cargo ou mandato e quanto “aos crimes praticados e em razão do cargo”. Por tratar-se de matéria que consta na Constituição, só há alteração por meio de uma PEC, no caso a PEC 333/17, que versa sobre a restrição do foro especial para apenas cinco autoridades: Presidente e Vice-Presidente da República, Chefe do Judiciário e os Presidentes da Câmara e do Senado e, apenas e tão somente, para acusações de crimes de responsabilidades, ou seja, cometidos em decorrência do mandato.
Afirmei, acima, que não trataria de questões jurídicas e não o farei, apenas apresentei a questão a partir da explicação didática no site da Câmara dos Deputados. Sociologicamente, nosso país assenta-se numa temporalidade histórica desencontrada. Assim, a dimensão econômica avançou célere, especialmente, na industrialização e a mudança do campo para a cidade lá nos idos dos anos de 1930. Mas, se a economia avançou, não podemos dizer que, por exemplo, a cultura política, a educação e a cidadania estavam ao seu lado. Por isso, somos modernos e tradicionais ao mesmo tempo. Até mesmo na economia a cidade de São Paulo apresenta símbolos da indústria do século XX, ícones dos serviços e da sociedade de redes hiperconectada na Avenida Paulista e Faria Lima e, infelizmente, pessoas trabalhando em situação análoga à escravidão em bairro como o Bom Retiro. E isso tudo em poucos quilômetros de distância. O Brasil cresceu, economicamente, todavia nossos índices educacionais estão entres os piores do mundo (piorou mais por conta da pandemia); nossa cidadania é fraturada naqueles que não compreendem que há direitos e deveres; e, não menos importante, nossa cultura política continua fortemente patrimonialista, mandonista, messiânica e autoritária.
Ao pensarmos as leis e a Constituição temos, sem dúvida, que levar em conta que, na confecção e no julgamento das leis, temos indivíduos, grupos e classes sociais, com interesses distintos e, na grande parte das vezes, na insaciável busca por privilégios, capturando posições no aparato burocrático estatal, tão bem estudado por Raymundo Faoro em sua obra “Os donos do poder”. Ou, então, faz bem pensar com Sérgio Buarque de Holanda em seu clássico “Raízes do Brasil”, indicando o conceito de homem cordial e nossa histórica dificuldade de separar interesses públicos dos interesses privados, bem como a sua crítica de que o círculo familiar não pode invadir o espaço do Estado. E, por fim, o antropólogo Roberto DaMatta que, em diversas de suas obras, como, por exemplo, “Carnavais, malandros e heróis” e “O que faz o brasil, Brasil?” nos apresenta o dilema brasileiro de não conseguirmos conviver num clima de igualdade, de direitos e de deveres, na figura dos indivíduos e sim uma existência social alicerçada sobre relações pessoais, cujas ações concretas acabam no famigerado “jeitinho” e no “você sabe com quem está falando?”.
Sabidamente, a PEC 333/17 traz enorme contribuição à sociedade brasileira e às ações de responsabilização dos que, hoje, são protegidos pelo foro por prerrogativa de função. A PEC, pelo visto, encontra-se parada, pois não é interesse da classe política votar algo que lhe atingirá. Longe de usar do recurso do exagero, mas o foro por prerrogativa de função foi reclamado por políticos assassinos, estelionatários, traficantes, entre tantas outras qualificações do Código Penal. Em minha modesta opinião, o foro por prerrogativa de função deveria ser extinto para todos, todos mesmo. O cargo e mandato seriam protegidos sempre que o ator estiver atuando dentro da lei, aliás, como deve ser em relação com qualquer cidadão no bojo de uma república.
Seria, caro leitor e cara leitora, um bom momento de se cobrar dos candidatos neste ano suas posições em relação à temática aqui tratada. A corrupção tem, em inúmeros casos, facilidades como o foro por prerrogativa de função. Urgente que, em nosso país, forjemos um clima de igualdade e, para isso, a escolha de nossos representantes para o Legislativo e para o Executivo deve ser ponderada criticamente, afastando os que estão ao lado de privilégios, da divulgação de fake news, de condutas autocráticas e de desrespeito às nossas instituições. Não é fácil, mas é possível com educação e valores cívicos democráticos.
*Rodrigo Augusto Prando, professor universitário e pesquisador. Graduado em Ciências Sociais, Mestre e Doutor em Sociologia pela Unesp. Conselheiro do Instituto Não Aceito Corrupção, membro da Comissão Permanente de Estudos de Políticas e Mídias Sociais do Instituto dos Advogados de São Paulo e voluntário do Movimento Escoteiro
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