O câncer avança sobre a população brasileira, já sendo a segunda causa de morte por doença em diversas regiões do país, ao mesmo tempo em que avançam as conquistas científicas para combatê-lo.
Ainda que haja um abismo entre tais avanços e seu acesso à população, a Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (Sboc) tem buscado contribuir para ampliar e agilizar a oferta de tratamentos na rede pública, reconhecendo que o benefício real dessas inovações só será completo quando elas chegarem, de forma célere e ininterrupta, a quem mais precisa.
As aprovações de novos tratamentos, muito bem-vindas, precisam ser acompanhadas de mecanismos que garantam sua efetiva oferta ao paciente oncológico.
Não bastam mecanismos legais, como a recém-aprovada Medida Provisória 1067/21, que estabelece prazos mais curtos para a oferta de antineoplásicos de uso oral e domiciliar pelos planos de saúde, ou a Lei dos 60 Dias (12.732/12), que obriga o Sistema Único de Saúde (SUS) a iniciar o tratamento oncológico em, no máximo, dois meses após o diagnóstico da doença.
É preciso que se estabeleçam os meios pelos quais decisões como essas se convertam em realidade. Passada uma década desde sua promulgação, a Lei dos 60 Dias parece ser, como se costuma dizer, mais uma lei que “não pegou”.
Não se trata de uma crítica às leis. A Sboc reconhece o esforço dos legisladores e participou ativamente do processo que culminou na chamada MP dos planos de saúde, editada como alternativa ao Projeto de Lei 6330/2019, o PL da Químio Oral.
O que se defende agora é o passo seguinte: a adequação dos processos após a aprovação dos tratamentos a fim de garantir o cumprimento dessas leis. Entre eles, estão os do modelo de aquisição de medicamentos de alto custo na rede pública.
Urge que o governo federal, no caso desses tratamentos, crie uma Autorização de Procedimento de Alta Complexidade (APAC) que cubra devidamente a despesa gerada ou assuma a compra centralizada com garantias de que a distribuição será feita de forma ágil.
A APAC é utilizada quando a unidade de atendimento, mediante autorização do Ministério da Saúde, recebe verba para garantir o cuidado integral ao paciente.
Ela se aplica, por exemplo, a medicamentos como os inibidores de tirosina-quinase (TKIs) de EGFR, aprovados em 2014 para o tratamento do câncer de pulmão. O custo real até hoje ultrapassa o disponibilizado, o que desencoraja seu uso.
Por outro lado, quando a compra é centralizada pelo Ministério, não raro as medicações demoram a ser entregues às unidades que as administram, provocando preocupantes interrupções nos tratamentos.
Caso notório é o do anticorpo monoclonal prescrito a pacientes com câncer de mama HER2 positivo, que apresentou atrasos significativos em sua disponibilização no ano passado.
Tais atrasos e interrupções nos tratamentos têm grande impacto no sucesso do controle do câncer. Afetam profundamente a vida do paciente e provocam danos inclusive à rede de cuidado. Estudo publicado em 2020 no The British Medical Journal demonstrou que, para cada quatro semanas de atraso no tratamento do câncer, o risco de morte aumenta até 13%.
Além do cuidado do paciente, o aspecto da sustentabilidade do sistema de saúde deve ser levado em conta. Diversos tipos de câncer podem ser controlados e mesmo eliminados se diagnosticados precocemente, por meio de recursos como cirurgia e radioterapia, abordagens de custo mais reduzido.
No entanto, a doença avançada requer medicamentos e outras tecnologias caríssimas. Portanto, a atenção primária à saúde, que em teoria é a base do SUS, pode fazer toda a diferença, já que grande parte dos tumores tem chance de cura quando descobertos no início.
Não há dúvida de que isso também teria impacto positivo sobre a carga financeira da doença no país.
O Brasil pode se orgulhar de ter um dos maiores sistemas públicos de saúde do mundo, exemplo para vários países e modelo capaz de atuar no controle de doenças de naturezas diversas, entre elas o câncer. Mas celebrar certas conquistas enquanto tratamentos já aprovados custam a chegar a quem precisa (e não pode esperar) é como fazer uma festa de aniversário sem bolo ou convidados.
* Paulo Hoff é oncologista, professor da Faculdade de Medicina da USP e presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (Sboc)
Fonte: Saúde Brasil.