O establishment democrata coroou Joe Biden no ciclo das primárias de 2020, quando o partido rapidamente se consolidou em torno dele na semana frenética após a primária da Carolina do Sul. Agora, esse establishment—ou pelo menos uma parte dele—está tentando destroná-lo após o desastre no debate com Donald Trump.
Entrando no debate, Biden tinha um objetivo claro: mostrar vigor suficiente para convencer os eleitores indecisos e os democratas inquietos de que ainda estava apto para o cargo, provocar Trump a falar sobre a eleição de 2020 e destacar alguns pontos de política para traçar um contraste entre ele e seu antecessor. Tal performance poderia não ter mudado fundamentalmente a trajetória da campanha, mas teria ajudado a silenciar a insatisfação latente entre os democratas.
Em vez disso, o presidente tropeçou em suas respostas, que muitas vezes eram confusas e hesitantes. Ele até declarou em um ponto — depois de ficar congelado por vários segundos — que “finalmente derrotamos o Medicare,” [programa de seguro de saúde do governo dos Estados Unidos] dando terreno a um ataque de Trump. Talvez porque estivesse com um resfriado, sua voz estava fina e rouca, como se ele tivesse engolido uma bola de lã de aço. A regra do debate que silencia interrupções provavelmente ajudou Trump aqui; colocou a natureza errante das respostas de Biden em plena exibição, sem distrações das próprias intervenções de Trump, tão proeminentes em seus debates de 2020.
Pedidos para que Biden desista surgiram em seguida. O colunista do jornal The New York Times Tom Friedman, amigo pessoal do presidente, disse que chorou ao assistir ao debate e declarou que Biden “não tem condições de concorrer à reeleição.” Nate Silver, guru das pesquisas, escreveu uma coluna com um pedido similar. Na MSNBC, Claire McCaskill, ex-senadora democrata do Missouri, disse que até muitos democratas eleitos “sentem que estamos enfrentando uma crise.”
Em termos de política, o debate ofereceu algumas percepções sobre a forma como ambos os candidatos concebem suas respectivas coalizões. Trump tentou se posicionar como o defensor dos benefícios federais, alegando que as políticas de imigração de Biden ameaçavam a Seguridade Social e o Medicare. Isso está longe das alegações de “esquema Ponzi” que alguns republicanos usariam para atacar a Seguridade Social durante os anos do Tea Party. Ao mesmo tempo, Trump defendeu cortes de impostos e desregulamentação. A suposta ruptura entre Ronald Reagan e Trump na política econômica pode ser um pouco exagerada.
Como esperado, Biden lançou ataques ao caráter de Trump e respondeu “sim” à pergunta do moderador Jake Tapper sobre se todos que votaram em Trump estavam “votando contra a democracia americana.” A retórica de emergência tem sido um tema de longo prazo na presidência de Biden, moldando sua estratégia nas eleições de meio de mandato e em sua candidatura à reeleição. Talvez tentando apelar para a base progressista, Biden pediu ação abrangente para combater as “mudanças climáticas,” que ele caracterizou como uma ameaça existencial.
As trocas sobre assuntos internacionais também foram reveladoras. Trump mencionou várias vezes a retirada caótica da administração do Afeganistão, um ponto de inflexão nas pesquisas de Biden. O ex-presidente apontou a invasão de Vladimir Putin na Ucrânia e o ataque do Hamas a Israel como sinais de que atores internacionais não temem Biden e que a instabilidade global aumentou durante seu mandato. Biden destacou sua construção de alianças. Ao defender seu apoio a Israel, ele se distanciou dos críticos progressistas daquele país, que sofreram uma derrota contundente no início desta semana quando o membro do “Squad,” Jamaal Bowman, perdeu sua primária [o deputado por Nova York foi derrota em seu distrito graças à intensa mobilização do Comitê de Assuntos Públicos Americano-Israelense (AIPAC, na sigla em inglês)].
As preocupações sobre a idade de Biden e seu desempenho vacilante ofuscam essas questões políticas, pelo menos por enquanto. Mas alguns fatores estruturais que transformaram a política americana podem afetar como essa questão se desenrola. Tanto Biden quanto Trump se beneficiaram da política de partidarismo negativo. Pode-se comparar a frenesi atual para substituir Biden com a tempestade desencadeada pelo vazamento do vídeo do site Access Hollywood em outubro de 2016. Naquela época, Trump resistiu a um esforço concentrado para fazê-lo desistir—e acabou vencendo a Casa Branca.
Biden pode sentir-se inclinado a fazer uma aposta similar hoje. Sua posição dentro do Partido Democrata é muito mais forte do que a de Trump dentro do Partido Republicano em 2016. Trump era um candidato presidencial insurgente. Biden é o presidente em exercício que varreu as primárias. Independentemente do que os eleitores pensem sobre seu desempenho no debate, Biden pode acreditar que ainda pode vencer porque a alternativa é Trump. A equipe de Biden manterá um olhar atento nas pesquisas. Um colapso completo em seus números poderia levar sua campanha a reavaliar. Se o apoio não desmoronar — e no eleitorado altamente polarizado de hoje, isso pode não acontecer — então o presidente pode muito bem decidir enfrentar a tempestade.
Biden também pode evitar um golpe palaciano de assessores seniores implorando para que ele se afaste. Sua falta de vigor provavelmente ampliou as esferas de influência para vários secretários de gabinete e funcionários da Casa Branca. Todos agora têm um incentivo adicional para mantê-lo como presidente e reforçar a bolha de otimismo na Ala Oeste.
Outro fator estratégico: Biden foi ungido em 2020 porque sua nomeação era o caminho mais claro para derrotar Trump. Esse cálculo ainda pode se aplicar. Biden certamente carece da vantagem nas pesquisas que teve em 2020, e pode estar ligeiramente atrás de Trump. Mas a eleição continua próxima o suficiente para que os democratas possam concluir que manter o presidente é sua melhor aposta.
Se Biden se afastar, é claro, as complicações dos democratas explodem. Embora escassas, as pesquisas públicas sobre um confronto entre Kamala Harris e Trump indicam que a vice-presidente poderia se sair pior do que Biden. Alguns potenciais candidatos democratas prevaleceram em estados-chave (o governador Josh Shapiro na Pensilvânia, o governador da Carolina do Norte, Roy Cooper), mas não há garantia de que poderiam substituir Harris ou vencer a nomeação. Um novo candidato poderia ajudar os democratas a se afastar das insatisfações que azedaram os americanos sobre a administração Biden, mas as dificuldades potenciais de tal mudança podem se mostrar muito desafiadoras.
Em última análise, a decisão não caberá aos operadores na sede do Comitê Nacional Democrata. Joe Biden ainda detém todas as cartas. Ele tem um número esmagador de delegados comprometidos. De acordo com as regras da Convenção Nacional Democrata, esses delegados “devem refletir de boa consciência os sentimentos daqueles que os elegeram.” Esses delegados estão essencialmente vinculados a Biden enquanto ele estiver concorrendo. Ninguém pode forçá-lo a se afastar.
Quando o debate terminou, o ator de ‘Star Wars’ Mark Hamill, um aliado cultural do presidente, ignorou a questão e emitiu uma torrente de ataques ao “cara anterior.” Então o presidente ainda pode contar com o apoio de Luke Skywalker. Se ele prevalecer, no entanto, não será a Força que o salvará, mas o Lado Negro: a repulsa pela alternativa.
©2024 City Journal. Publicado com permissão. Original em inglês: Can Anyone Force Biden to Step Aside?