Grávida de 30 semanas, Andrielli Gonçalves, de 21 anos, viu a casa em que vivia no bairro Niterói, em Canoas, região metropolitana de Porto Alegre, ceder e ser arrastada pelas águas, deixando apenas os pilares da estrutura. Sozinha com os dois filhos, um de 5 e outro de um ano e 10 meses, assim como milhares de pessoas atingidas pelas enchentes no Rio Grande do Sul, ela foi para um abrigo.
No local, devido à sua condição de gravidez de risco, ela foi encaminhada para a Ulbra (Universidade Luterana do Brasil), o maior abrigo do Estado, que tem mais recursos, como atendimento médico, mas ela não estava tranquila. Foi então que ouviu sobre um recém-aberto abrigo só para mulheres.
‘‘Aqui estou renovada, porque me sinto acolhida. Se choro, têm muitas para me ajudar, tenho meus filhos acolhidos. Estou na minha casa, com um monte de mulheres, que são minha família agora’’, diz ela.
O abrigo em Canoas, instalado no pavilhão de uma empresa, começou a funcionar na última quinta-feira (9) pela manhã, e já tem 50 pessoas atendidas entre mulheres e crianças. A iniciativa é mantida por doações e apoio de organizações como o Instituto Survivor e o Me Too Brasil, e surgiu de conversas entre voluntárias, a partir de relatos de situações de vulnerabilidade para mulheres abrigadas.
Há relatos de mulheres abandonadas por parceiros depois das enchentes, de desconforto e insegurança na hora de usar os banheiros ou mesmo dormir e não perceber algo acontecer com os filhos, conta Marianne Calixto, advogada e uma das coordenadoras do local.
‘‘A gente tem que trabalhar na prevenção de tudo. Tem que evitar que sofram abuso, tem que dar segurança, elas já perderam a vida que tinham, já perderam a casa’’, diz.
Atuando como voluntária no local, a médica e ex-participante do Big Brother Brasil Marcela McGowan ajudou a mobilizar a montagem do abrigo. Em situações de catástrofe, avalia ela, as mulheres atingidas perdem ainda rede de apoio e ficam mais expostas.
‘‘O que a gente viu na montagem do abrigo e nesses espaços é a possibilidade de garantir para essas mulheres mais segurança, em primeiro lugar, e conforto diante dessas situações’’, diz ela. ‘‘Tanto que a gente ouviu de mães: é a primeira vez que estou dormindo depois de tanto tempo, posso deixar meus filhos tranquilos. Esses espaços garantem um pouco o resguardo das mulheres da sua saúde física e mental.”
Abrigos como os de Canoas têm se multiplicado em Porto Alegre e na região metropolitana, uma semana depois das enchentes que atingiram as cidades, colocados em igrejas, escolas ou prédios privados cedidos. Os primeiros surgiram de iniciativas privadas, mas agora começam a vir também do poder público. A prefeitura de Porto Alegre anunciou a abertura de dois no domingo (12) e deve ter o terceiro, nesta segunda-feira.
O governo estadual afirma que não há abrigos privados, e que todos devem informar sobre existência de espaços para as prefeituras, ‘‘que designa uma equipe para orientar, verificar as condições de acolhimento e encaminhar pessoas aos abrigos’’. “Todos são públicos. O que há são instituições da sociedade civil organizada que organizam espaços de acolhimento.” Os espaços também são acompanhados pelo governo do Estado para orientação e apoio.
‘‘Se começou a pensar nesses locais porque se tu for colocar a sociedade toda em um abrigo, o que acontece aqui fora vai acontecer de forma potencial lá dentro. Mesmo sem nenhum caso de abuso, já teríamos que agir’’, diz Paula Britto Granetto, do Núcleo da Mulher da Defensoria Pública do Rio Grande do Sul.
Na capital, Alena Marques, de 25 anos, começou a mobilizar um grupo devido a relatos que chegavam de abrigadas e voluntárias, no dia 5 de maio, e entrou em contato com a advogada Thaís Recoba, organizando um local exclusivo para mulheres e crianças, que começou a funcionar na última quinta.
Uma das mulheres abrigadas ali é Denise Milan, 44 anos, moradora de Eldorado do Sul, que já havia perdido tudo dentro de casa em outra enchente, cerca de seis meses antes. Depois de quatro dias ilhada na casa de uma vizinha, ela foi resgatada com a filha de 10 anos e trazida para Porto Alegre. As duas foram levadas então para um abrigo em uma escola.
‘‘Minha filha não podia ir ao banheiro, eu tinha que ir junto. Não estava segura’’, conta ela. ‘‘As águas não estão baixando, voltou a chover, então a gente veio para cá. Eu não conseguia dormir tranquila, e é melhor prevenir antes que aconteça alguma coisa.’’
Na maioria dos casos, as mulheres têm chegado até os abrigos exclusivos depois de ouvir de conhecidos e voluntários sobre os locais. A maioria deles diz aceitar mulheres em geral e crianças do sexo masculino até 12 anos. Agora, um protocolo vem sendo discutido entre governos e instituições como a Defensoria Pública e o Ministério Público, para estabelecer diretrizes e uniformizar o funcionamento.
A reportagem teve acesso à minuta do documento intitulado ‘‘Protocolo de proteção às mulheres e crianças em situações de emergência climática’’. Ele deve ser analisado pela Advocacia Geral da União (AGU) e pela Casa Civil antes da assinatura, e depois publicado nos diários oficiais da União e do Estado.
O documento, inspirado em casos como o furacão Katrina, nos Estados Unidos, e o terremoto no Haiti, prevê, entre outras coisas, que o acolhimento deverá garantir ‘‘a existência de serviços de abrigamento exclusivos para mulheres e seus filhos, com equipe de profissionais exclusivamente de mulheres’’ e reforço na equipe do Centro de Referência da Mulher Vânia Araújo Machado, ligado ao governo estadual.
A ministra das Mulheres, Aparecida Gonçalves, se reuniu com o governador Eduardo Leite (PSDB) neste domingo. Ela diz que a ideia é discutir um protocolo um pouco mais amplo, abrangendo também aspectos como renda e o pós-emergência.
‘‘Vamos apoiar, porque são abrigos importantes e fundamentais. O protocolo vai estabelecer as diretrizes, as linhas, estratégias e ações que devem ser seguidas, inclusive, por abrigos privados e particulares que existem hoje e que existirão no futuro’’, afirmou ela ao Valor.
O governo gaúcho afirma que o protocolo deve determinar o fluxo das ações de salvamento e acolhimento nos abrigos, assegurando direitos humanos e bem-estar de mulheres e crianças, e que trabalha na criação de um abrigo modelo exclusivo.
Dias antes, Leite disse que os casos confirmados até o momento de violência sexual em abrigos envolveriam familiares das vítimas e que pediu ao marido, o médico Thalis Bolzan, e ao secretário de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos, Fabricio Peruchin, para acompanhar e dar prioridade aos abrigos exclusivos.
Foram confirmados seis casos de crimes sexuais ocorridos em abrigo, com prisões efetuadas de todos os suspeitos, segundo a Secretaria de Segurança Pública. Entre as vítimas, de acordo com a pasta, há mulheres e crianças e as suspeitas são de crimes de importunação sexual, estupro e satisfação de lascívia. O policiamento pela Brigada Militar, a PM gaúcha, foi reforçado.
Mãe de cinco filhos, com idades entre um e 13 anos, Shislei Laurindo, 34 anos, diz que se sentia desconfortável no abrigo geral onde estava e pediu uma luz. Ficou sabendo do local para mulheres em Canoas.
‘‘Consigo dormir tranquila porque estou segura, tem um monte de mulheres. Mas mexeu um pouco com a minha mente. É difícil entender, não é fácil chegar e ver a cidade destruída assim.”