Menos de 2% dos PMs investigados em São Paulo são condenados por júri

Por Milkylenne Cardoso
16 Min Read

Em setembro, a advogada Débora Nachmanowicz tornou-se mestre em “Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia” pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Sua dissertação mostra como os policiais militares podem ficar sem punição quando matam. Observando casos de morte cometidas por PMs de São Paulo entre 2015 e 2020, a advogada verificou que de 1.224 inquéritos sobre os crimes, apenas 122 foram denunciados pelo Ministério Público à Justiça (cerca de 10%).

Menos da metade dos casos denunciados (60) foi a júri após decisão do juiz. Após o julgamento, apenas um terço (20 casos), houve condenação – menos de 2% dos inquéritos iniciais.

Além da conta da impunidade da PM paulista, Débora Nachmanowicz acompanhou julgamentos e entrevistou jurados no 1º Tribunal do Júri em São Paulo, onde verificou outro mecanismo que serve para inocentar os réus quando são policiais: o constrangimento.

Os julgamentos são acompanhados na plateia por inúmeros PMs que dispõem de informações sobre cada jurado.

A audiência é “lotada de pessoas que têm acesso ao aparato de violência estatal”, assinala a advogada e acadêmica.

Outro mecanismo, usado pelos advogados, é a alegação da legítima defesa, pouco confrontada porque faltam testemunhas desde o inquérito para esclarecer como se deram os crimes. As testemunhas evitam falar também por constrangimento e medo.

>> A seguir os principais trechos da entrevista de Débora Nachmanowicz à Agência Brasil.


Brasília (DF) 18/12/2024 - Advogada Débora Nachmanowicz, autora mestrado sobre o julgamento de policias miliares de São Paulo.
Foto: Fabio Risnic/Divulgação
Brasília (DF) 18/12/2024 - Advogada Débora Nachmanowicz, autora mestrado sobre o julgamento de policias miliares de São Paulo.
Foto: Fabio Risnic/Divulgação

Brasília (DF) 18/12/2024 – Advogada Débora Nachmanowicz, autora do mestrado sobre o julgamento de policias militares de São Paulo. Foto: Fabio Risnic/Divulgação

Agência Brasil: Qual a razão de sua pesquisa tratar dos julgamentos dos PMs?

Débora Nachmanowicz: A origem do meu interesse é ligada à minha história profissional. Eu atuei em casos pelo Instituto Pro Bono, no início da minha carreira, e muitos deles envolviam abordagens policiais, prisões. Existia ali um entendimento de que muitas dessas situações eram, de alguma forma, abusivas ou arbitrárias. Mas um caso foi determinante para a definição da minha pesquisa.

Um cliente que foi preso em 2018 com dez gramas de maconha em Taboão da Serra [região metropolitana de São Paulo]. Consegui soltá-lo com base em decisão do Superior Tribunal de Justiça. Mais ou menos um mês depois, a mãe dele fez contato para contar que o filho foi morto pela polícia. A mãe soube pelos moradores que seu menino foi espancado e colocado na viatura. Mas o que consta nos autos oficialmente é que ele teria roubado um carro e quando a polícia tentou pará-lo, houve troca de tiros, um suposto comparsa teria fugido e assim ele morreu.

Na verdade, não houve nenhuma troca de tiros. A vítima do carro roubado não reconheceu ele como o ladrão. Procuramos a delegacia, contamos a história levantada pela mãe, mas todos os moradores não quiseram testemunhar por medo da polícia. A polícia sabe quem são essas pessoas. O caso foi arquivado com a única versão que existia nos autos, a versão dos policiais.

Agência Brasil: O episódio chegou a ter um inquérito?

Débora Nachmanowicz: Inquérito quase sempre existe quando envolve morte decorrente de intervenção policial. Depois da análise do fluxo dos procedimentos que eu fiz, percebi mais ou menos 90% de arquivamento ainda na fase policial.

 

Agência Brasil: Conforme sua dissertação, entre 2015 e 2020, foram concluídos 1.224 inquéritos contra policiais militares, mas efetivamente só 122 viraram denúncias do Ministério Público. Por que esse afunilamento?

Débora Nachmanowicz: A maior descoberta não é o grande arquivamento entre inquéritos e denúncias. Isso é objeto de várias outras pesquisas antes da minha.

O grande achado da pesquisa que fiz é como os jurados julgam policiais militares. O que acontece com os casos que viram denúncia. Mesmo quando existe um investimento investigativo, muitas vezes não se consegue angariar elementos suficientes para sustentar a denúncia, para sustentar a acusação.

O que suportaria a denúncia são elementos que anulem a versão da legítima defesa dos PMs, que é o que geralmente sustenta a defesa desses policiais. Mas como disse no caso do meu cliente, as pessoas não querem testemunhar por medo.

Há ameaças veladas e, às vezes, não veladas. A mãe do meu cliente narrou que a polícia ficava fazendo ronda na rua que morava. Quando só tem a palavra do policial e não tem imagens ou não tem testemunhas, sobra muito pouco para sustentar uma denúncia, a não ser quando o caso tem contradições gritantes, e aí os promotores têm como denunciar.

 

Agência Brasil: Nem todos os casos foram denunciados. O juiz tem que aceitar?

Débora Nachmanowicz: A primeira fase do júri termina com a decisão do juiz, que pode ser de pronúncia, de impronúncia ou de absolvição sumária. Tanto a impronúncia quanto a absolvição sumária terminam o caso e o réu não vai a julgamento.

 

Agência Brasil: O que quer dizer impronúncia? Qual a diferença com absolvição sumária?

Débora Nachmanowicz: A absolvição sumária é quando foi comprovado que não tem o fato. [O acusado] não foi o autor do crime, o fato não é uma infração penal, ou quando ficar demonstrada causa de exclusão do crime. A impronúncia vai ocorrer quando o juiz não se convence da materialidade do crime. Ou seja, não se convence que aquele fato é um crime ou não se convence que tem indícios suficientes de autoria.

 

Agência Brasil: Depois do crivo dos juízes, dos 122 casos, apenas 60 foram a júri popular. Necessariamente, tinham que ir a júri popular?

Débora Nachmanowicz: Sim, necessariamente. Porque envolve assassinato. Em 1996, houve uma mudança da lei. A chamada Lei Hélio Bicudo [que alterou os códigos Penal Militar e de Processo Penal Militar] determinou que homicídios dolosos contra civis cometidos por policiais militares deveriam ser julgados pela justiça comum. Antes, eram julgados pela Justiça Militar.

 

Agência Brasil: É possível imaginar que à época dos julgamentos na Justiça Militar a impunidade já fosse alta?

Débora Nachmanowicz: Sim. Os defensores da volta desses julgamentos para a Justiça Militar alegam que antes da Lei Hélio Bicudo se condenava muito mais. Isso não é verdade. Temos dados de outras pesquisas que demonstram que a porcentagem de absolvição ou de desclassificação do crime para uma tentativa de homicídio ou para uma lesão corporal – o que levava a penas muito baixas – era muito grande. Na prática, era bem benéfico para os policiais.

 

Agência Brasil: Quanto aos julgamentos no tribunal do júri, a dissertação mostra que só um terço teve condenação, 60 casos apenas tiveram esse desfecho. Por que esse último crivo?

Débora Nachmanowicz: Os meus números de condenação envolvem todos os casos de policiais militares que cometeram homicídio. Isso é muito importante frisar. Não são apenas os casos de morte decorrente de intervenção policial em operações. Outras mortes que foram cometidas por policiais militares também estão nessas 20 condenações. Dessas 20 condenações, somente quatro são de casos decorrentes de algum confronto policial.

O que eu entendo que leva a uma alta absolvição em casos de confronto policial? São vários elementos. Existe um entendimento de que a versão do policial acaba tendo um peso maior quando há a alegação de legítima defesa. ‘Ah, mas se o morto era bandido, tinha histórico, estava em fuga, o policial vai esperar o cara atirar para depois atirar? É ele ou o bandido.’ Além disso, a maior parte dos julgamentos que observei de policiais militares em casos de confronto, julgamentos que acabam sendo midiáticos, são acompanhados na plateia por inúmeros policiais. E isso causa uma sensação de pressão, de constrangimento nos jurados.

Eu distribui questionários para os jurados do primeiro tribunal do júri e questionei sobre essa sensação, se isso poderia causar algum desconforto ou não, se influenciaria de alguma forma. Várias respostas revelam medo de retaliação, porque os advogados, os policiais, e até os réus que são policiais sabem o nome dos jurados e sabem a profissão dos jurados.

O jurado se sente muito exposto estando ali numa plateia lotada de policiais. São policiais à paisana. Eles não estão fardados, mas a presença deles é evidenciada, tanto pelos advogados, que mencionam a presença do apoio do batalhão, que geralmente está assistindo, e até pelo próprio promotor que menciona também isso. Uma plateia lotada de pessoas que têm acesso ao aparato de violência estatal.

 

Agência Brasil: O constrangimento que existe sobre eventuais testemunhas na fase de inquérito também existe de outra forma sobre o corpo de jurados?

Débora Nachmanowicz: E aí, em paralelo a isso, não digo que seja determinante, mas há o posicionamento de que o policial, sim, vive uma vida de perigo. Esse sentimento paira na sociedade e também pode colaborar com a absolvição. É claro que o policial convive com a violência e está super exposto. Mas isso não permite que ele ultrapasse tantos limites da arbitrariedade.

 

Agência Brasil: Qual o perfil dos jurados que responderam ao questionário de pesquisa?

Débora Nachmanowicz: Como indicado na dissertação, existe uma sobrerrepresentação de funcionários públicos, compondo aproximadamente 20%-25% dentre os jurados. Há uma grande presença de profissionais da educação e do direito. A ampla maioria dos jurados (aproximadamente 80%) tem alto grau de educação formal (ensino superior ou mais). Com exceção da escolaridade, que é um elemento super importante, o grupo de jurados do 1º Tribunal do Júri é relativamente representativo da cidade de São Paulo.

A gente tem um pouco mais de mulheres do que homens no júri. Quanto às porcentagens de brancos, pardos e pretos também está mais ou menos equilibrado; assim como a renda. Uma grande surpresa foi quanto à localização da residência dos jurados. Temos jurados espalhados por toda a cidade de São Paulo e cidades contíguas. Jurados que julgam em São Paulo que não são da cidade de São Paulo, moram nessas regiões limítrofes. Tem bastante gente da periferia.

 

Agência Brasil: Dos 20 condenados, quatro casos são decorrentes de algum confronto policial. Por que em um sistema que é tão difícil ser sentenciado, essas pessoas acabaram por ser condenadas? Pressão da opinião pública?

Débora Nachmanowicz: Eu acho que a questão da opinião pública não é tão elementar. Em diversos casos em que houve absolvição havia muita cobertura da mídia. É difícil a gente conseguir identificar exatamente as razões de uma condenação, porque as decisões dos jurados não são fundamentadas.

É tudo muito subjetivo. Eu não pretendi na pesquisa fazer relações de causalidade. Mas creio que os casos em que houve condenação, ficou muito evidente que o réu mentiu ou omitiu informações de uma maneira que não tinha muita justificativa. São casos muito explícitos, quando não há nenhuma possibilidade de sustentar a possibilidade de legítima defesa.

 

Agência Brasil: A pesquisa para a dissertação de mestrado foi feita no 1º Tribunal do Júri de São Paulo. Como hipótese inicial, é possível generalizar os resultados observados para o resto do país?

Débora Nachmanowicz: Eu acredito que sim e creio que pode ser até pior. Em São Paulo, a gente tem uma formação de jurados que é mais comprovadamente representativa do que em outros lugares. Em diversas capitais de outros estados, os jurados são quase 100% funcionários públicos. Isso pode afetar o resultado dos julgamentos.

 

Agência Brasil: Ainda falando como hipótese, se um número maior de inquéritos contra policiais tivesse desdobramento em denúncias do Ministério Público, e se essas denúncias fossem encaminhadas a julgamento, avalia que a violência policial diminuiria?

Débora Nachmanowicz: Há um conjunto de coisas aí. Temos em perspectiva o controle administrativo, o controle de orientação do comando. Em um primeiro momento, os policiais que matam podem ser presos, mas depois que o inquérito corre, tudo é arquivado.

O policial que foi alvo de inquérito é solto e volta para o batalhão, volta para a rua. Mas se houvesse um controle maior sobre esses casos, para que fossem julgados de uma maneira mais rígida – assim como, por exemplo, acontece com todos os acusados de roubo e tráfico -, isso poderia alterar a maneira como a polícia age. Haveria sim uma chance de reduzir a violência policial.

 

Agência Brasil: Recentemente o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, admitiu que as câmeras nas fardas dos policiais militares são “instrumento de proteção da sociedade e do policial.” Há expectativa que a câmera no uniforme vire um dispositivo comum no uniforme dos PMs?

Débora Nachmanowicz: Espero muito que isso aconteça e que seja feito com controle mais estrito, ou seja, com a câmera ligada 100% do tempo e gravando.

Também espero que haja punição imediata de qualquer policial que seja flagrado tentando burlar a captação das imagens.

 

Agência Brasil: Há mais alguma outra descoberta nas pesquisas?

Débora Nachmanowicz: Sim, uma coisa essencial: a informatização dos procedimentos de alistamento, requisição e sorteio dos jurados. Em São Paulo, na 1ª Vara do Júri, existe um programa que informatizou o alistamento. Esse programa eletrônico é atualmente utilizado somente no 1º Tribunal do Júri.

Eu entendo que precisa ser expandido para os outros quatro tribunais da cidade de São Paulo e para o restante do estado, de forma a melhorar o funcionamento dos cartórios e de todos os procedimentos que estão ao redor do alistamento e da convocação dos jurados.

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