A disputa presidencial deste ano deverá ser uma das mais tensas e complexas da história brasileira, e o impacto de novas tecnologias nos pilares democráticos, com a propagação de desinformação, está no radar da Justiça Eleitoral, do Judiciário e do Congresso Nacional.
Diante desse cenário, a votação do chamado “Projeto de Lei das Fake News” (PL 2630/2020) poderia ter consequências diretas no arcabouço legal e criar novos parâmetros que contribuiriam para coibir a disseminação em massa de notícias falsas. No entanto, como a vigência das regras e sanções previstas pelo projeto para este ano ainda é incerta, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) se prepara para coordenar o pleito munido das armas das quais já dispõe, como o diálogo transparente com plataformas de mídias sociais e serviços de mensagens.
A última delas a assinar um termo de adesão ao Programa Permanente de Enfrentamento à Desinformação com o TSE, no último dia 25 de março, foi o Telegram, isso depois de quase ser banido do país por decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF). WhatsApp, Google, Instagram, Facebook (Meta), YouTube e TikTok já assinaram o mesmo termo de compromisso.
O “PL das Fake News” foi aprovado no Senado, em 2020, e teve a discussão retomada na Câmara em fevereiro deste ano. No entanto, há resistências de diversos setores para que a proposta seja votada agora e tenha impacto sobre a disputa eleitoral deste ano.
“Existem polêmicas e divergências. É uma matéria que não tem parâmetro internacional, um tema de fronteira, que envolve tecnologia, e temos que dialogar e construir”, afirmou o deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), relator do projeto, que apresentou a versão final do texto nesta quinta-feira (31/03).
Algumas medidas, esclarece, não terão vigência imediata. Além disso, é preciso que o Senado volte a analisar o texto e acate as mudanças propostas pela Câmara para que haja um impacto sobre as eleições deste ano.
Otimista com a possibilidade de o texto ainda ser apreciado nos próximos dias, Silva diz ser evidente que “haverá impacto no funcionamento das plataformas digitais e internet”, pois, se transformado em lei, o projeto dará instrumentos para o poder Judiciário atuar já nas eleições de 2022.
Alguns pontos, como a exigência para que as plataformas tenham representação jurídica no Brasil, teriam vigência imediata. O alvo central dessa medida específica era o Telegram, que só nomeou um representante legal após o recente ultimato do Supremo.
Responsabilidade de gerir e remover conteúdos
Para Marilda de Paula Silveira, especialista em direito administrativo e eleitoral e professora de democracia e novas tecnologias no Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), o “PL das Fake News” traria mudanças de 180 graus “tanto para as plataformas quanto para as eleições e os usuários”.
O maior avanço do projeto, na opinião da professora, é “tirar do Estado o ônus de fazer a gestão do equilíbrio de conteúdos” e transferir esse custo para as plataformas. As plataformas hoje já fazem essa gestão do que tiram ou não da internet, diz, “só que sem nenhuma regulação e sem nenhum controle do Estado, sem norma preestabelecida”.
“Essas empresas produzem normas que regulam a nossa vida cotidiana, e o fazem à revelia do Estado. O projeto estabelece critérios de transparência, coloca obrigações que as plataformas terão que cumprir”, observa.
“Os pesquisadores hoje não sabem como a plataforma faz a distribuição de conteúdo. O que aparece para mim e por quê? Qual critério para suprimir um conteúdo? A plataforma faz isso manualmente ou é critério eletrônico? Qual o vínculo da pessoa que faz a remoção do conteúdo com a empresa?”, aponta Silveira.
Pelo texto do projeto, as plataformas serão obrigadas a explicar que critérios estão seguindo. O relator, Orlando Silva, diz ser a favor do direito de as plataformas fazerem a moderação do conteúdo. “Mas defendo que o usuário tem o direito ao contraditório. Se a plataforma cometer erro, tem que haver reparação”, pondera.
“Sistema de desinformação”
Um dos principais méritos do projeto é, sem dúvida, trazer à cena o problema do sistema de desinformação no Brasil”, afirma a professora Eliara Santana, doutora em Linguística, pesquisadora colaboradora do IEL/Unicamp sobre desinformação, desinfodemia e letramento midiático.
Santana pontua que “o PL não resolve o problema, que é muito complexo e precisa ser atacado por vários flancos, mas o texto sinaliza medidas a serem tomadas e, sobretudo, mostra que a desinformação será combatida”.
Coibir a monetização de conteúdos falsos que atacam a democracia, um dos focos do projeto, é crucial, defende a pesquisadora. “A desinformação não se reduz aos disparos em massa. Existe uma estrutura de produção de conteúdo falseado, falso, mentiroso, e isso precisa ser atacado, questionado, punido. Não é possível permitir a monetização de conteúdos claramente falsos. Sabemos que por trás da produção de conteúdo falso e da disseminação em larga escala, há um financiamento pesado”, observa Eliara Santana.
A estrutura do sistema de desinformação, explica a professora, é profissional e usa as redes sociais e mídias tradicionais como aparatos. O Telegram é uma das principais ameaças ao pleito de outubro, aponta. A especialista destaca que um dos principais problemas do Telegram são os grupos de até 200 mil membros e canais de listas de transmissão sem limite de pessoas, além do “avanço das redes de desinformação bolsonaristas em direção ao aplicativo, que até há pouco não tinha nem sequer representação legal no Brasil”.
Orlando Silva retirou do texto do projeto o conceito de “contas inautênticas”. Para o relator do projeto, a desinformação, infelizmente, é impulsionada na maioria das vezes por pessoas públicas e pelos próprios políticos. O que o texto deixa claro, explica o parlamentar, é que contas automatizadas precisam ser identificadas pelas plataformas.
Sanção penal pode barrar criminosos
Um dos principais avanços do projeto, destaca Silva, é a criação de um novo “tipo penal”. “Promover ou financiar a disseminação de fato que se sabe inverídico (esse conceito importamos do Código Eleitoral), com uso de meios automatizados, de robôs, e serviços não disponíveis por plataformas. Prisão de 1 a 3 anos, mais multa. Não queremos pegar a ‘tia do WhatsApp’. Queremos pegar as organizações criminosas que se estruturam, com dezenas de equipamentos, computadores, com escala industrial para disseminar fake news”, enfatiza.
Para o deputado, além da sanção penal, a obrigatoriedade de identificação de contas automatizadas, a exigência de regras mais claras e transparentes das plataformas sobre conteúdos e restrições impostas à viralização devem ajudar a coibir a disseminação de fake news.
Marilda Silveira acredita que a sanção penal prevista no projeto – de um a três anos de prisão e multa – é um dos temas mais polêmicos, mas também o mais eficaz para punir os criminosos.
“Boa parte dos deputados quer suprimir isso, lógico. A única coisa que faz com que quem está produzindo conteúdo desse tipo pare é o risco de processo criminal”, diz a professora, que já atuou na Justiça Eleitoral e em campanhas eleitorais.
Caso o “PL das Fake News” não seja aprovado, a professora de direito eleitoral prevê momentos difíceis no pleito deste ano. “Se nada acontecer, teremos o cenário que sempre tivemos: o TSE muito atento, com boa vontade e disposição, com acordos bem definidos com as plataformas, mas a realidade se impõe. E, na realidade, nós não temos instrumentos para combater a desinformação da forma como ela circula”, considera.
Uma novidade positiva, no entanto, é a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), aponta. “Na prática, as campanhas eleitorais vão ter que apresentar relatório de como fizeram a circulação de dados nas eleições. De onde vieram esses dados, quem os deu para a campanha. Se [o candidato] comprou, vai ser cassado.”
Denúncias devem explodir, prevê TSE
Segundo a secretária-geral da presidência do TSE, Christine Peter da Silva, o tribunal não se furtará a tomar decisões para coibir o sistema de desinformação e ataque à democracia no pleito de outubro.
“O melhor caminho, sem dúvida alguma, que gera mais segurança jurídica e legitimidade maior, é a aprovação de regras do jogo pelo Parlamento. Mas se isso não acontecer a tempo, ou não for adequado para este ano eleitoral, efetivamente o TSE terá que tomar decisões, com base na Constituição”, diz.
O enfrentamento à desinformação tem avançado desde 2016, afirma Peter da Silva. “Hoje o TSE tem um programa robusto, consistente, testado de forma bastante exitosa e proveitosa em 2020. Com aperfeiçoamentos, achados e melhorias na prática. Esse é um aprendizado orgânico, que se faz com experiências eleitorais”, pontua. “Não é que estamos tranquilos, mas estamos o mais alerta possível.”
A secretária-geral do TSE cita ainda a criação de uma assessoria específica na estrutura institucional administrativa do tribunal para combater a desinformação como um avanço importante. E aponta um outro trunfo: “A tecnologia hoje já está bastante avançada para rastreio desse financiamento.”
Ela aposta, também, no trabalho em conjunto com o Ministério Público Eleitoral para suportar a avalanche de denúncias sobre conteúdos falsos ou ofensivos à democracia. Em 2020, foram 6 mil denúncias. O número, agora, deve ser 15 vezes maior, prevê.
Fonte: DW Brasil.