Nas últimas semanas, com a discussão sobre a aprovação da “Lei de bases e pontos de partida para a liberdade dos argentinos” (chamada também de Lei Ómnibus) que foi enviada pelo presidente Javier Milei à Câmara dos Deputados, as ruas de Buenos Aires tornaram-se palco de intensas mobilizações marcadas por atos de vandalismo e confrontos com a polícia.
Esses tipos de manifestações conhecidas como “piquetes” (ato de bloquear a livre circulação nas ruas e avenidas), organizadas pelos sindicatos e organizações sociais, têm sido parte integrante da história social e política do país ao longo dos anos.
Apesar de sua proibição por parte da ministra de Segurança, Patricia Bullrich, e do êxito das forças de segurança pública em contê-las, tudo indica que só devem aumentar nos seguintes meses de governo direitista. Pois não se tratam de apenas manifestações por parte de um setor que diz se sentir atacado e prejudicado, senão que há toda uma trama por trás e um sistema que envolve os principais sindicalistas e dirigentes na busca pelo controle e pelo poder.
Em 2017, o então presidente Mauricio Macri foi testemunha direta de como a “máfia dos piqueteros” pode derrubar um governo. Além das greves gerais que paralisaram o país durante meses, o ex-chefe de Estado teve que lidar com um ataque ao Congresso durante a discussão sobre a reforma da fórmula previdenciária, episódio semelhante ao ocorrido na última sexta-feira (2). A história se repete porque os atores são os mesmos. Mas afinal quem são eles?
Hugo Moyano: o “Poderoso Chefão”
Desde a década de 1960, Hugo Moyano se converteu na principal figura da luta sindicalista e foi essencial para a queda do governo macrista. Considerado uma das cinco pessoas mais influentes da Argentina, nos últimos 15 anos consolidou o poder com o qual pôde “parar o país”. Dinheiro, corrupção e poder definem a sua conturbada história de vida, deixada como legado aos seus sete filhos que hoje seguem os seus passos.
Nascido em La Plata em 9 de janeiro de 1945, Moyano começou a trabalhar aos 11 anos em uma fábrica de salsichas em Mar del Plata. Após terminar o ensino fundamental, foi trabalhar em um açougue como entregador. Aos 17 anos conseguiu seu primeiro emprego na empresa de transportes “Verga Hermanos”. Lá, organizou a sua primeira greve por alterações na roupa de trabalho. Rapidamente se interessou pelas questões sindicais e em 1966 foi eleito delegado de sua empresa.
No entanto, o “Negro” (chamado assim por seus colegas) teve que interromper a carreira devido ao serviço militar obrigatório. Ao finalizar, ingressou na empresa de transportes Santuri como caminhoneiro. Cresceu politicamente e em 1983 tornou-se secretário-geral do Partido Justicialista (PJ), “peronista”, de Mar del Plata. Um ano depois, venceu o concurso interno do seu sindicato e foi eleito secretário-geral adjunto do Sindicato dos Caminhoneiros.
Em 1987 foi eleito deputado provincial da província de Buenos Aires pelo Partido Justicialista, cargo que ocupou até 1991. Após dois anos conquistou o cargo de chefe da Federação Argentina de Caminhoneiros. De lá foi para a Secretaria-Geral da Confederação Geral do Trabalho (CGT) denominada “rebelde” ou dissidente.
Sob o lema “Perante uma forte política de austeridade, daremos uma resposta forte”, realizou greves e mobilizações contra o Governo da Aliança desde dos inícios de 2000. Protestavam, entre outras razões, porque o então presidente De la Rúa insistia em pagar ao Fundo Monetário Internacional (FMI).
“Sou um dirigente que levantou as bandeiras históricas do movimento operário e do peronismo, que estavam abandonadas há muito tempo”, declarou naquele então.
Nem o presidente francês Jacques Chirac escapou das garras do sindicalista e teve de telefonar, em 2003, para Néstor Kirchner para impedir o boicote de Moyano à empresa francesa Carrefour devido a uma questão contratual. Três anos depois, o governo chinês também foi obrigado a interromper a compra de dois navios de soja argentina para responder a outro boicote realizado por ele aos supermercados chineses em Buenos Aires.
Fanático do futebol, em 2008, Moyano fundou o Club Atlético Social y Deportivo Camioneros. Em 6 de julho de 2014, com 69,44% dos votos, venceu as eleições para presidir o Independiente, vencedor de sete Copas Libertadores.
Família, dinheiro e corrupção e futebol
Hugo Moyano casou-se três vezes e teve sete filhos. Pablo é filho do primeiro casamento do sindicalista com Olga Mariani, e Karina é a segunda. Logo vem Paola María Isabel, casada com o presidente da Associação do Futebol Argentino (AFA), Claudio Tapia, e Emiliano, falecido em 2011 após um ataque cardíaco aos 39 anos. Do segundo casamento, com Elvira Cortés, nasceram Hugo Antonio e Facundo. Jerónimo é filho único do terceiro casamento com Liliana Zulet.
Pablo é seu herdeiro natural no Sindicato dos Caminhoneiros onde atua como secretário adjunto. Facundo é o mais político de todos e exerceu o cargo de deputado nacional entre 2011 e 2021. Hugo Jr. é advogado trabalhista, conselheiro do pai e assessor jurídico de uma dezena de sindicatos da CGT. E Jerônimo, o mais novo, começou a ganhar relevância e trabalha como secretário do pai no sindicato. O restante de seus filhos prefere se manter no silêncio.
Hoje, Moyano tem um patrimônio de mais de dez milhões de dólares em carros luxuosos, propriedades suntuosas (sendo uma delas uma villa de dez mil metros quadrados no exclusivo Parque Leloir, avaliada em um milhão de dólares) e um império corporativo formado por uma drogaria, uma construtora, uma seguradora, uma carpintaria metálica e uma empresa têxtil; todas, empresas colocadas em nome de seus familiares mais próximos.
O sindicalista afirma que tudo o que tem vem do salário de presidente da Assistência Social dos Caminhoneiros, da Assistência Social dos Caminhoneiros e do que ganha como secretário-geral do sindicato e da federação dos sindicatos dos caminhoneiros. No entanto, o ex-presidente do Club Atlético Independiente fez fortunas com o Sindicato dos Caminhoneiros, especialmente durante o governo de Néstor Kirchner.
A polícia já investiga as empresas lideradas por Liliana Zulet, terceira e atual esposa de Moyano. Trata-se de uma prestadora de serviços médicos, uma fábrica têxtil, um serviço de correio e uma construtora que dependem do sindicato, mas cujos recursos eram direcionados para as contas bancárias da família. Porém, não é a primeira vez que os Moyanos ficam sob a mira da Justiça.
O sindicalista enfrenta acusações de corrupção em vários processos judiciais. Além de ser acusado de envolvimento em irregularidades no sindicato dos caminhoneiros, ele também está sendo investigado por lavagem de dinheiro pela compra de terrenos na província de Córdoba (segundo o processo, ele os havia comprado por US$ 6 milhões em 2013, quando os vendedores os teriam adquirido três meses antes por aproximadamente US$ 310 mil) e de casas no Parque Leloir (se investiga se o dinheiro utilizado na compra dos imóveis provém de superfaturamento em empresas ligadas a ele).
Moyano também é investigado por associação ilícita no Independente, onde ele e seu filho presidiram como presidente e vice-presidente. Quem os denunciou foi o ex-líder dos “barra bravas” Pablo “Bebote” Álvarez. Em sua declaração, prestada em 18 de dezembro de 2018, perante o promotor Sebastián Scalera no caso da juíza Brenda Madrid, Álvarez disse que o líder do Sindicato dos Caminhoneiros foi quem “assinou um fideicomisso” pelo qual circulava o dinheiro proveniente da compra e venda de jogadores e garantiu que “ele (Hugo Moyano) sabia que aquele dinheiro não iria ao clube.”
Na mesma causa, Moyano é investigado por montar uma estrutura destinada à lavagem de dinheiro através da contratação dos serviços de uma empresa de turismo superfaturando as viagens da equipe, extorquindo empresas de diversas áreas para finalizar obras do clube e promovendo a posterior lavagem de dinheiro por intermédio da Aconra, uma empresa que estaria vinculada à sua família.
Método Moyano
O “moyanismo” jamais irá morrer, assim como o “peronismo” tampouco o fará. Essa é a crença que predomina em grande parte da população argentina. Isso se deve à predominância dos métodos utilizados por Moyano que até hoje lhe dão o poder necessário para conduzir o país independentemente de quem esteja na cabeça do Executivo.
O método Moyano (chamado assim pela mídia) é o resultado de anos de estratégia sindical e de negociações empregadas por Hugo Moyano e pelo Sindicato dos Caminhoneiros. Os acordos com o governo de turno e as mobilizações contra aqueles que não respondem aos seus interesses, terminaram tornando-se uma constante no país.
Em entrevista à agência de notícias alemã DW, Paula Lenguita, investigadora do Centro de Estudos e Investigações Laborais (CONICET), definiu Moyano como “um dirigente muito polêmico” e acrescentou que “grande parte de seu poder vem da capacidade disruptiva do sindicato de transporte, que conta com o recurso estratégico de bloquear os acessos às capitais federais”.
Por sua parte, Carlos Fara, Diretor do Conselho Consultivo do Centro para a Abertura e Desenvolvimento da América Latina (CADAL), comparou o sindicalista com o americano Jimmy Hoffa, que foi presidente do poderoso sindicato dos caminheiros dos Estados Unidos entre 1957 e 1971, “com seu estilo exorbitante, voraz e bandido” (Hoffa desapareceu sem vestígios em 1982, e seu corpo até hoje não foi encontrado — a suspeita é que a máfia italiana, com a qual Hoffa tinha fortes laços, seja a responsável pelo sumiço). “Ele especulou em entrar na política ativa — na verdade criou um partido —. Nunca gozou de boa imagem, nem na política e muito menos na sociedade. Sempre foi um personagem respeitado e temido, não amado, nem admirado”, disse à DW.
O que sabemos é que querido por uns e odiado por outros, Moyano hoje deixa um legado de resistência a políticas de livre mercado que dificulta o avanço das propostas de governo de Javier Milei. Consciente disso, o presidente argentino já afirmou em várias oportunidades que não permitirá que aconteça com ele o mesmo que fizeram com o ex-presidente Macri e que seu governo terá “mão firme” contra todos aqueles que atentem contra a liberdade e a democracia dos argentinos.