O Supremo Tribunal Federal (STF) tem derrubado leis estaduais ou municipais que atendem a demandas conservadoras, como a flexibilização do porte de armas, a proibição do uso de linguagem neutra e do ensino de temas relacionados ao gênero. A Corte ainda vai analisar a legalidade de outras medidas defendidas pela direita, como o funcionamento das escolas cívico-militares, leis que proíbem a participação de crianças em paradas LGBTQIA+ e o uso de banheiros de acordo com a identidade de gênero ou mesmo unissex.
Apesar de esses temas causarem divisões na sociedade, as decisões do STF têm sido unânimes. Contribui para isso o fato de que não está sendo analisado o mérito das questões — por exemplo, se a linguagem neutra deve ser utilizada ou não — mas competência dos entes federativos em legislar sobre esses temas. Nos casos já julgados, o entendimento foi de que os Legislativos locais extrapolaram suas funções.
A maioria dos processos tem chegado em bloco para serem avaliados pelo STF. Algum órgão ou entidade reúne diversas leis similares e apresenta de uma só vez diferentes ações questionando cada uma delas.
Em junho de 2024, a suprema corte obteve maioria para suspender leis municipais em Goiás e Minas Gerais que proibiam ou restringiam o uso de linguagem neutra. O ato legislativo de Águas Lindas de Goiás (GO) proibia a “linguagem neutra” na grade curricular e no material didático de instituições de ensino públicas ou privadas, em documentos oficiais das instituições de ensino, em editais de concursos públicos, assim como em ações culturais, esportivas, sociais ou publicitárias que percebem verba pública de qualquer natureza.
Já a lei de Ibirité (MG) vetava “linguagem neutra ou dialeto não binário” em escolas públicas e privadas e seu uso por agentes públicos da cidade. A norma previa sanções administrativas e eventuais responsabilizações civis e penais a agentes públicos que usarem a linguagem neutra.
STF discute se estados e municípios têm competência para legislar sobre uso de linguagem
Outro ponto discutido nos últimos meses é se estados e municípios podem restringir o uso da linguagem neutra — quando não há diferenciação entre os gêneros masculinos e femininos. Já houve seis decisões contra a restrição, entre definitivas e provisórias.
Os ministros consideraram no ano passado inconstitucional uma lei de Rondônia que proibia a prática em instituições de ensino e editais de concurso, por entenderem que cabe à União definir as diretrizes sobre a Educação. Neste ano, já houve cinco decisões liminares suspendendo legislações semelhantes, e duas já foram confirmadas por todos os integrantes do Supremo. Elas fazem parte de um pacote de 18 ações apresentadas pela Aliança Nacional LGBTI+ contra leis de diversas cidades, incluindo Belo Horizonte e Porto Alegre, e do Amazonas.
Apesar da unanimidade no entendimento da falta de competência, alguns ministros fizeram ressalvas ao uso da linguagem neutra. Em uma dessas ações, Cristiano Zanin afirmou que “o corpo normativo vigente” deveria ser respeitado e ele “não prevê a modalidade dita neutra de linguagem”. Mas Zanin concordou que a questão deve ser tratada em âmbito nacional. Nunes Marques destacou em outro julgamento que uma lei municipal que obrigasse a linguagem neutra seria igualmente irregular.
Armas e ensino sobre gênero
No ano passado, a Advocacia-Geral da União (AGU) contestou dez leis que facilitavam o acesso a armamentos, a maioria editadas nos últimos anos. Em abril, outras duas ações de teor semelhante foram apresentadas. Os ministros já foram favoráveis à AGU em cinco ações, invalidando legislações do Paraná, do Espírito Santo, do Mato Grosso do Sul e de Muriaé (MG).
Um pacote de ações foi apresentado em 2017 pela Procuradoria-Geral da República (PGR) contra leis que proibiam ensinos sobre gênero e sexualidade nas escolas. O Supremo decidiu a favor da PGR em seis ações, e uma ainda será julgada. Outro processo semelhante foi apresentado no ano passado pelo PDT, contra uma lei de Uberlândia (MG), e ainda não foi analisado.
Professor da FGV Direito Rio, Álvaro Jorge afirma que esse tipo de discussão no STF é comum, porque o federalismo brasileiro concentra muitos poderes no Legislativo federal.
— Existe um acúmulo de propostas do espectro considerado mais conservador da sociedade, tratando dessas matérias.
Banheiro pode dividir
Nas próximas ações sobre leis na área de costumes, a que envolve banheiros pode gerar divisões no STF. No mês passado, a Corte rejeitou um processo pedindo que transexuais pudessem usar banheiros de acordo com o gênero com o qual se identificam. A decisão foi por questões processuais: a maioria considerou que o caso discutido não envolvia temas constitucionais.
Relator do caso, o presidente do STF, Luís Roberto Barroso, ressaltou que o tema iria voltar em outros processos. E no início do ano, a Associação de Travestis e Transexuais (Antra) apresentou ações contra cinco leis estaduais que proíbem banheiros unissex ou o uso de sanitários por pessoas trans de acordo com seu gênero. Outra ação é contra leis do Amazonas e de Betim (MG) que proíbem crianças e adolescentes em Paradas do Orgulho LGBT+.
Assim como no caso da flexibilização das armas, o STF se tornou palco de discussão de outra bandeira do ex-presidente Jair Bolsonaro: as escolas cívico-militares. O Ministério da Educação encerrou o programa da gestão anterior, mas elas foram mantidas por alguns estados. Com isso, partidos de esquerda questionaram no Supremo os projetos de São Paulo, do Paraná e do Rio Grande do Sul.